A Beleza da Alma – Último Capítulo.
Hadong, Coreia do Sul
Anya se olhou pela última vez no espelho que sua dermatologista lhe entregara sem poder acreditar no que via. A maioria das cicatrizes ainda eram visíveis, mas o resultado do tratamento havia lhe dado uma aparência menos apavorante e isso havia melhorado em muito a sua autoestima. Agora admirava os traços do seu rosto e a pele que o revestia.
– Ainda temos um longo caminho pela frente, Anya – disse a Ae Na, sua simpática dermatologista – mas se você me visitar aqui na Coreia de três em três meses, usar os cremes que eu lhe prescrevi e tomar todos os cuidados, acho que vai ficar bem melhor. Como eu lhe disse, as cicatrizes do corpo dificilmente irão desaparecer por completo, mas o rosto já está bem melhor.
Anya assentiu com a cabeça, enquanto se admirava. Parecia outra mulher. Os cabelos curtos, o rosto com maquiagem, as roupas bem alinhadas. O dinheiro pode comprar uma boa aparência, ainda que o físico não ajude, pensou Anya. Viria a beleza da alma? Ou do orgulho
Já estava quase há um ano na Coreia do Sul e achava que fazia anos. No início foi muito difícil. Uma nova língua, nova cultura, novas pessoas, mas agora, já havia se ambientado e tinha medo do que iria acontecer dali a três dias, quando iria voltar para o Brasil.
– Eu falei, amiga! Você está linda! – disse Beth, que estava tão animada como ela pelos resultados alcançados com o tratamento.
A vida de Beth também mudara bastante nos últimos meses. Ela havia finalmente terminado de vez com Junior e agora namorava com a sua dermatologista Ae Na. Beth conheceu a médica em uma balada e depois, insistiu para Anya fazer tratamento com ela, assim, as duas poderiam se ver com mais frequência.
Anya concordou com Beth, apenas para ajuda-la com Ae Na, mas quando começou a ver os primeiros resultados do tratamento, resolveu continuar.
Agora, que o prazo para Anya permanecer na Coreia chegava ao fim, a amiga contou-lhe que havia resolvido permanecer naquele país. Ela e Ae Na iriam morar juntas, assim que Anya retornasse.
Para Anya, isso foi um baque. Estava muito feliz pela amiga, pois sabia que Beth merecia alguém que a amasse e a respeitasse. Por outro lado, voltar para o Brasil significava encontrar as pessoas que mais haviam magoado seu coração: seu marido e sua mãe.
Bem, na verdade, isso também havia mudado: Avana Medeiros não era sua mãe, pelo menos, não biológica.
Anya descobriu a verdade, no dia em que chegou na Coreia. Avana havia ligado para ela, exigindo que Anya lhe enviasse dinheiro todo o mês. Anya estava muito aborrecida e negou. Avana então contou toda a verdade. Sua mãe biológica havia falecido no parto e ainda teve o disparate de dizer que como ela a havia adotado, Anya tinha o dever de mantê-la agora que tinha dinheiro.
Anya desligou o telefone, não retornou as mensagens e proibiu Do Jin de mandar um centavo que fosse para Avana.
Do Jin e ela se comunicavam por mensagens. Eram breves, sem emoções, sem implorar perdão ou explicar as razões de tudo o que havia acontecido.
Anya achou que era cômodo para ele: ela havia saído de cena, mantido a farsa do casamento e ainda havia assumido a vice-presidência. Era tudo o que ele queria. Ela trabalhava a maior parte do tempo a distância, mas às vezes, visitava a filial de Seul e de Busan. Nos últimos meses, Anya também havia visitado Hong Kong, Bang Kok e Beijing, a fim de organizar todas as filiais do Oriente que ficaram a cargo de Anya.
Durante um ano, Anya conseguiu organizar tudo conforme o gosto e as instruções de seu marido, mas agora, o prazo para ficar na Coreia estava se encerrando e em três dias, teria que enfrentar Do Jin em carne e osso. Seria no mesmo dia em que o prazo do casamento enfim se encerraria. Então, toda e qualquer obrigação de Do Jin também se encerraria. Ele estaria livre para dar um pé na bunda de Anya. E ela não tinha dúvidas de que seria isso o que iria acontecer. Obrigada e adeus! Talvez somente adeus.
Anya não sabia exatamente o que iria fazer, mas sabia que precisava voltar ao Brasil. Ao menos para encarar Do Jin e pedir o divórcio.
Ele estava tratando-a com frieza nos últimos meses, provavelmente, ficaria feliz ao finalmente se livrar dela.
Era o que partia seu coração em dois.
Desde que chegara na Coreia, não havia tido um só dia em que não se lembrava de Do Jin e da noite esplêndida que haviam passado juntos. Como pode um homem ser tão obcecado por dinheiro a ponto de levá-la para cama, sem considerar suas emoções? Como ele pode ter planejado tudo sem ter um pingo de empatia por ela? Ele deveria estar rindo dela agora. Talvez, ele tivesse sentido asco por ter que fazer amor com ela. Talvez ele a odiasse, talvez a ignorasse, talvez a despedisse, talvez a ridicularizasse. Não adiantava ficar conjecturando agora.
Anya retesou-se toda na cama de hospital, enquanto se lembrava de Do Jin, não passando despercebido de Beth.
– Tudo bem, Anya? – perguntou a amiga.
– Sim, claro… estou bem. Ficou ótimo, Ae Na, obrigada! – Adicionou Anya em um coreano bem rudimentar, entregando-lhe o espelho.
Ela fazia aulas de coreano à noite junto com Beth e ambas também já havia frequentado um curso de gestão empresarial e estavam na metade de um curso de Finanças.
Ainda que ela fosse despedida da Do Jin, Anya agora tinha experiência e cursos para conseguir um bom emprego. E havia economizado muito. Tinha dinheiro o suficiente para comprar um pequeno apartamento no Brasil e ainda viver por muito meses sem trabalhar, se fosse necessário, mas sabia que isso não iria acontecer. Já havia recebido algumas ofertas. Entretanto, por alguma razão, permaneceu na Do Jin e ainda não havia concordado com nenhuma oferta de trabalho.
Todas as suas despesas na Coreia eram pagas pela Do Jin. A princípio, ela pensou em negar o dinheiro dele, mas depois, achou que era algo merecido por seu trabalho. Ela trabalhava por longas horas e sempre cumpria seus prazos e metas, auxiliando muito Do Jin, ainda que à distância.
Ela também não faltava a uma reunião da mesa diretora. Obviamente, ela participava por Meeting, online, mas não era a única. Agora que Do Jin havia aceitado finalmente sua ajuda com tecnologia, outros gerentes de outras filiais participavam da reunião geral via Meeting.
Ela tinha 1 por cento de todas as ações da Do Jin, por isso, tinha voto nas decisões mais importantes. Embora tenha sido bom pensar em ser uma sócia de uma empresa bilionária, Anya já havia preparado um contrato passando tudo novamente para seu marido. Depois do divórcio, queria cortar todo e qualquer laço com ele.
Por isso, o encontro que havia marcado com Do Jin para dali a três dias era decisivo. Talvez fosse o último encontro. A última vez em que veria o rosto de Do Jin, que sentiria a presença dele, mas precisava disso. Depois de cortar todos os laços com Do Jin, garantindo que ele ficaria com a empresa, sabia que seria escorraçada por ele. Sabia que isso iria acontecer, porque ele não precisaria mais dela.
Então, precisava estar preparada.
Um dia depois no aeroporto, Beth se esvaía em lágrimas enquanto se despedia da amiga.
– Volte pra cá, depois, Anya. Não tem o porquê ficar lá. Aqui, você pode ficar comigo e com a Ae Na. Pode refazer a sua vida, conseguir um emprego em alguma empresa.
– Talvez eu retorne, Beth. Afinal, não tem nada me prendendo lá mesmo. – falou ela, enquanto abraçava Beth. Talvez voltasse, talvez não. Tinha medo de não voltar pois amava Beth como sua irmã. E tinha medo de ter que voltar, sem outra opção.
O voo da Coreia fez uma parada em Londres, onde Anya desceu para almoçar com um fornecedor da Do Jin na Inglaterra.
Ela estava cansada e exausta, mas a reunião foi boa, pois havia enfim conhecido o dono de um empresa com o qual Anya sempre conversava por telefone e whatsapp. Na reunião, recebeu mais uma oferta para administrar a filial britânica de um dos fornecedores da Do Jin.
Horas depois, retornou para o aeroporto e rumou ao Brasil.
Havia chegado algumas horas antes de o prazo do divórcio se extinguir. Ela olhou no relógio. Exatamente dali a seis horas, encerraria-se o prazo e tudo estaria acabado.
Para seu desagrado, foi Dae Sun quem foi ao aeroporto para recebê-la.
– Olá, minha nora, como tem passado? – disse sua sogra com uma simpatia bem forçada para ela.
– Não se preocupe, Dae Sun – respondeu ela, com ceticismo – O prazo se encerra em seis horas, e então, você não precisará mais ser cordial comigo.
Dae Sun olhou para ela com desagrado.
– Então, eu serei bem sincera: não gosto de você, apesar de você ter mudado muito sua aparência e parecer ser outra mulher, mais elegante e segura de si mesma. Por mim, eu te expulsaria do aeroporto aqui mesmo e te mandaria pro inferno de onde você saiu, mas se eu fizer isso, meu filho ficaria muito desapontado comigo. Então, é melhor nos tolerarmos, pelo bem de Do Jin, pois eu sei que ele significa alguma coisa para você, ainda que não admita.
Dae Sun era uma mulher horrível, mas sabia muito bem apertar os botões certos, pois Anya se calou depois disso.
Quando percebeu que o motorista da limusine estava indo para o condomínio de Do Jin ao invés de ir para sua vila no Burbúrio, Anya reclamou:
– Onde é que estamos indo?
– Do Jin falou que você irá passar a noite na casa dele. Então, apenas obedeça e não crie problemas.
– Você sabe que eu não sou obrigada a te obedecer ou a Do Jin, não é? – retrucou Anya – Eu só vou concordar com isso, pois quero terminar logo com toda essa situação.
Depois de algum tempo, a limusine parou defronte a porta da frente da mansão de Do Jin.
– Você não vai entrar? – perguntou Anya para Dae Sun, que não se moveu do carro.
– Do Jin quer conversar com você em particular.
Quando a limusine se moveu, levando Dae Sun consigo, Anya se virou e entrou na mansão. Parecia igual à ultima vez que a vira. Aquele estilo minimalista e clássico que Do Jin parecia gostar.
A casa parecia estar completamente vazia, embora grande parte das luzes estivesse acesa, como se esperando por Anya.
Ela deixou a mala no hall de entrada, pois imaginava que logo teria que partir, assim que Do Jin chegasse. Como estava cansada, sentou-se no sofá da sala de visitas e descansou a cabeça sobre o apoio de braço. Estava tão exausta com a viagem e com o Jet Lag que não conseguiu segurar o sono.
Quando acordou. Somente uma luz de abajur estava acesa, dando um ar caloroso a sala. Além disso, havia uma coberta sobre seu corpo. Será que foi Do Jin quem a colocou ali?
No corredor que dava para a cozinha, Anya viu uma luz bruxuleante e resolveu segui-la. Na ilha da cozinha, Do Jin estava sentado sobre um banquinho alto e experimentava uma taça de vinho.
– Olá, Anya? Como foi a viagem? – perguntou ele, ao vê-la. Ele não parecia bem. Apesar de ter forçado um sorriso, Anya o conhecia o suficiente para dizer que ele parecia tão exausto quanto ela.
– Algum problema com a empresa? – perguntou ela, preocupada. A partir de amanhã, não teria mais nenhuma ligação com ele ou com a empresa, ainda assim, não desejava o mal para quem havia lhe sustentado nos últimos meses.
– Não… nenhum. – respondeu ele, simplesmente. Então, ele deslizou na direção de Anya, um envelope marrom em tamanho A4. – Aqui está o que eu lhe prometi. O divórcio e um bom acordo. Alguns milhões e 5% das ações da empresa é o mínimo que posso lhe oferecer. Além disso, eu recomendei você para um dos nossos fornecedores na Inglaterra. Ele disse que encontrou com você em Londres e ficou muito feliz em oferecer a você a direção de uma das filiais.
Anya olhou para o envelope enquanto tentava controlar a própria respiração. Do Jin foi rápido. Mais rápido do que ela supôs para se livrar dela. Um bom acordo e um emprego em um outro país, longe o suficiente dele.
– É assim, então? – perguntou ela, com um amargor na voz que não passou despercebido por Do Jin. – Um ano sem me ver e é isso que você tem a me dizer?
– Achei que era o que queria.
– É sim… era o que eu queria… – respondeu ela. Uma lágrima se formou em seus olhos e escorreu pelo rosto. – Obrigada por tudo, por sua gentileza e pela sua esmola. Eu descobri que posso conseguir o que eu quero sem você, então, só vou ficar com o divórcio.
Ela abriu o envelope.
Leu os termos do divórcio de forma en passant e assinou o contrato, sem se ater aos detalhes. Percebeu que sua mão tremia, mas ela apertou as unhas contra a palma da mão para disfarçar.
– Você está linda, Anya! Você é linda, sempre foi, mas agora, acho que sabe disso. – disse Do Jin, bebericando mais uma vez o vinho, calmamente, enquanto Anya sentia que estava pronta a desabar.
– Como é que você pode ser tão frio? – perguntou ela, enxugando a lágrima com as costas da mão. – Ah, claro. Você deve estar muito contente por finalmente se livrar de mim, conseguindo o que você sempre queria. Sua empresa, seu dinheiro, seus bens.
– Nada do que eu te falar, vai fazer você acreditar em mim. Eu amo você, Anya. Sabe… queria passar os meus dias ao seu lado, quero envelhecer com você. Mas, principalmente, eu queria que acreditasse que essas palavras são sinceras.
Do Jin falava de uma maneira tão profunda que era quase impossível não acreditar naquelas palavras e Anya sentia no coração que talvez devesse crer, uma última vez, mas era tão difícil.
– Queria que você pudesse simplesmente enxergar o que está aqui – disse ele , batendo contra o peito. – Mas eu sei que você não pode, não quer, não consegue entender o que eu sinto, e eu entendo. Eu te machuquei demais para que você acredite, então, achei que o mais sensato e humano era deixar você ir… embora isso esteja me matando.
Ele novamente bebeu, desta vez, um grande gole do vinho e se levantou, deu a volta na ilha e se aproximou dela.
Tocou de leve o rosto de Anya, com a ponta dos dedos.
– Se você pudesse, ao menos um pouquinho, acreditar em mim… Nós dois poderíamos ser felizes. Eu queria tanto te beijar e te abraçar. Queria tanto poder sentir você de novo nos meus braços. Queria tanto enrolar meus dedos nos seus cabelos e sentir o seu perfume…
– Você está bêbado! – disse Anya, constatando o estado de Do Jin, ao ver ele se desequilibrando levemente.
– Talvez sim… – disse ele. – Mas isso não muda o que eu sinto por você.
Quando ele se desiquilibrou novamente, iria cair sobre a ilha da cozinha, mas Anya o segurou.
– É melhor levar você para o seu quarto. – disse ela, passando o braço dele por sobre o seu ombro.
Ela o arrastou para cima, por que Do Jin, mal conseguia andar. E quando chegou ao quarto, jogou ele sobre a cama. Ela tirou os sapatos de Do Jin, e quando foi ajeitá-lo na cama, ele simplesmente a agarrou, e a puxou para cima dele.
– Do Jin! – reclamou ela. Ela estava com as duas mãos espalmadas no peito dele. Os lábios perto um do outro. Sentindo o aroma um do outro. Sentindo o coração um do outro.
– Eu te amo tanto, Anya… eu senti tanto a sua falta. Senti tanto… você me castigou demais…
Ele ergueu a cabeça para roçar os lábios de Anya.
Ela mordiscou os lábios com aquele contato. Ela também o amava e queria tanto acreditar no que ele falava. Mas e se ele a enganasse novamente? Se fosse só uma mentira? E se não fosse… Ela precisa de coragem para arriscar amar e ser amada.
– Eu também te amo, Do Jin… – respondeu ela, olhando nos fundos dos olhos dele, vendo o rosto dele se iluminar enquanto ela falava – Eu também senti sua falta… mas…
– Então me ame, Anya…. me perdoe e me ame… por favor, eu imploro… por fav…
Anya tomou os lábios de Do Jin, enquanto acariciava seu rosto. As mãos dele a puxaram para si, intensificando aquele contato.
– Eu te perdoo, Do Jin… eu te perdoo de verdade. Foi um acidente, você não teve culpa… Aconteceu. Era para ser assim. Não fique mais se punindo por isso…eu te perdoo… E eu te amo… eu te amo demais…
Dessa vez, foi nos olhos de Do Jin que uma lágrima se formou, mas Anya a secou com os lábios.
– Não é só o seu rosto que é lindo, Anya… mas sua alma… Nenhuma alma é mais bela do que a sua…
– Obrigada, meu amor, por mostrar que eu posso ser linda como eu sou… que eu posso me amar, que eu posso amar você também… Que eu posso ser feliz…
Os dois se beijaram novamente, unindo corpos e alma em um doce e terno momento de amor. Um amor que nasce na alma e escapa pela pele… pois a verdadeira beleza está no coração de quem aprende cada dia a amar um pouco mais…