Capítulo 2 – Imune
Joo Mi saiu bufando da penitenciária, entrando no carro e saindo rápido do estacionamento. Ainda sentia o toque daquele animal em sua mão. Como ele se atreveu a tocá-la?
Antes de sair, ela reclamou de Oh Nan na guarita da penitenciária, mas o guarda parecia aéreo, pálido e assustado.
– Você escutou o que eu disse? – perguntou Joo Mi, ao ver que o homem não entendia o que ela falava – Qual é o seu problema, oficial?
– Desculpe, doutora… Estou preocupado. É o surto do vírus. Há mais vítimas, os hospitais estão cheios e acabaram de noticiar que o centro foi invadido por saqueadores. Minha filha disse que está doente. Estou com medo que ela tenha contraído esse vírus…
– Não se preocupe. A mídia gosta de criar pandemias onde não há… isso logo passa… alguém já teve ter criado uma cura… – disse ela, irritada com o comportamento pouco profissional do guarda.
Enquanto dirigia, Joo Mi ligou o rádio para saber mais informações sobre o tal surto, mas perdeu a paciência um pouco depois. Como o seu carro era ligado ao celular, resolveu escolher uma apresentação de Chopin enquanto acelerava.
Escutar música clássica a acalmava. Não havia ficado com medo de Oh Nan, afinal, ela já havia encarcerado aquele demônio, mas detestava o jeito arrogante de Oh Nam, sempre provocando-a. Sentir o seu toque, causou tremores em todo o seu corpo, e um asco indescritível.
Rumou em direção a zona sul, a melhor área da cidade, onde Joo Mi morava num luxuoso apartamento. Quando entrou, percebeu que o guarda do prédio mal deu conhecimento de sua presença, mais ocupado em assistir ao noticiário.
Joo Mi costumava ser cordial com os guardas, mas estava tão aborrecida que passou reto pela guarita e subiu para o décimo andar onde ficava seu apartamento.
Não queria admitir, mas Park Oh Nam era o tipo de homem que sabia irritá-la. Ele já estava preso. O que mais ele esperava receber? Custava-lhe dizer onde estava o corpo de Tae Kim Gil? A família da vítima estava a toda hora enchendo sua paciência com aquilo. E Oh Nan empacara. As vezes, Joo Mi imaginava se Oh Nam não estava fazendo aquilo de propósito, só para ela visitá-lo na cadeia. Não gostava do jeito como ele a olhava, maldito psicopata.
Imaginava o que poderia estar se passando naquela mente doentia. Pensar naquilo fazia seus pelos se arrepiarem. Não queria pensar no que ele havia feito com vítimas. As mortes eram bizarras, sempre de maneira diferente e com requintes de crueldade.
Oh Nam costumava decepar as vitimas enquanto elas ainda estavam vivas, ora queimava, ora usava ácido, ora usava choques elétricos. Ele controlava a hora da morte e fazia suas vítimas durarem vários dias antes de morrerem. Não queria mais pensar naquilo, mas certamente ele havia feito algo a Tae Kim Gil que não queria mostrar, só imaginava o que poderia ser.
A única coisa que a família recuperara de Tae Kim Gil fora um pedaço de seu pé. Estava todo mordido e a princípio, a polícia imaginou que Kim Gil havia sido atacado por algum animal selvagem na floresta. Contudo, depois que mais corpos surgiram com essa mesma característica, é que descobriram se tratar de um maníaco psicopata.
Além de tudo, as mordidas nos corpos batiam exatamente com a perfeita e alinhada arcada dentária de Oh Nam que admitiu que ele mesmo mordia suas vítimas enquanto elas ainda estava vivas. Mas o canibalismo era apenas uma pequena parte do seu ritual de morte.
Joo Mi serviu-se de vinho. Adorava vinho. Era quase um vício, mas nunca bebia durante o dia, somente a noite, para ajudá-la a dormir. Joo Mi tinha dificuldades para dormir. Mas meia taça de vinho e um comprimido calmante eram suficientes para render-lhe uma boa noite de sono.
Ligou a TV apenas para ajudar-lhe a adormecer. O noticiário atualizava o número de mortos nos hospitais por causa do tal surto, que muitos diziam ser pior do que o Corona. Sem dar muita importância, Joo Mi desligou a TV e adormeceu.
Quando escutou o som do despertador no celular, Joo Mi despertou imediatamente e foi para o banho. Arrumou-se rapidamente e foi para a cozinha preparar o café regado a iogurte natural e granola. Depois de alguns minutos, ligou a TV e espantou-se. Nada. Apenas um grande letreiro: “Se você é imune, venha até Jinju”. Jinju era uma cidade pequena, não muito distante de Iksan.
Achando estranho, Joo Mi mudou o canal, mas a mensagem era a mesma. “Que diabos”.
Ela gostava de assistir o noticiário antes de ir para a Promotoria. Tinha um caso difícil naquele dia. Uma mulher havia assassinado o marido para dar o golpe do seguro. Era óbvio que ela era culpada, mas tinha apenas provas circunstanciais. A polícia tinha feito um péssimo trabalho e agora ela teria que usar de toda a retórica do mundo para poder condenar aquela assassina à prisão.
Sem dar muita importância para a TV, Joo Mi saiu do apartamento. Escutou choro no apartamento ao lado, mas como sempre, não quis se intrometer e desceu até o térreo. Não havia ninguém na guarita, embora a TV estivesse ligada na mesma transmissão “Se você é imune, venha até Jinju”. Seria um novo reality show?, pensou Joo Mi, rumando em direção ao estacionamento.
Foi só quando saiu com o carro que percebeu que alguma coisa muito errada estava acontecendo. Na hora do rush, Iksan ficava apinhada de carros, mas não havia nenhum movimento agora. Ela andava pelas ruas como se fosse uma cidade abandonada.
– O que está acontecendo? – perguntou a si mesma. Parou num cruzamento onde dois carros queimavam, provavelmente por conta de um acidente, mas não havia ninguém ali para assistir, nem ambulância ou polícia.
Nervosa, procurou o celular na bolsa e discou para seu pai. Não havia sinal.
– Droga!.
Ligou então o rádio do carro.
– … é uma gravação. Repetindo. Isto é uma gravação. Se você está ouvindo essa transmissão, você é imune. Venha até JinJu. Temos alimento, água, abrigo e segurança. Isto é uma gravação. Repet…
Joo Mi desligou o radio, sentindo-se nervosa. O mundo todo resolvera sumir durante a noite.
– Que diabos! – disse a si mesma enquanto via sua mão tremer sob o volante.
Precisava ver seu pai. Era isso.
Deu a volta e retornou para a zona sul. Seu pai fora um importante juiz em Iksan e prefeito por duas vezes. Agora estava aposentado e morava em sua mansão, perto do apartamento de Joo Mi. Seu pai era a única pessoa com a qual Joo Mi tinha algum relacionamento.
Joo Mi tinha um problema. Era um transtorno de personalidade. Ela tinha empatia. Muita empatia. Contudo, não conseguia demonstrar.
As pessoas achavam que ela era fria, outros que ela era maluca, pois ela queria sempre fazer tudo certinho. Na verdade, Joo Mi tinha que seguir regras.
As regras faziam sentido em sua vida. Foi assim que o pai de Joo Mi a havia treinado, para que ninguém percebesse que sua filha tinha uma condição que a tornava diferente.
A filha do Juiz Joo Mi era uma garota com uma mente aguda e uma memória infinita. Memorizou toda a constituição com apenas doze anos. Aos quinze, escrevera um artigo sobre código penal. Contudo, quando o quesito era relacionamentos, a coisa mudava. Joo Mi não conseguia administrar uma relação.
Não conseguia reconhecer emoções nas outras pessoas. Ela sofreu muito ao entrar para a faculdade. As pessoas a rejeitavam. Ela tinha sentimentos, só não conseguia identificar a mesma coisa nas outras pessoas. Ela queria muito ter amigos, ser normal, mas depois de algumas tentativas frustradas, Joo Mi passou a se dedicar somente aos estudos e ao trabalho. O resultado é que somente confiava e conversava com seu pai, seu porto seguro.
Joon Mi entrou na mansão cantando pneus e estacionou no jardim da frente da casa. Correu para a porta e bateu com todas as forças. Depois de um tempo, a porta se abriu.
– Ma Ri? Ma Ri onde está meu pai? – perguntou ela, invadindo a casa. Como não encontrou o pai na sala, onde ele sempre estava sentado, sentiu o desespero assomar sua mente.
Ma Ri era o velho motorista. Trabalhava para o pai desde que Joo Mi se dera por gente. Mesmo depois de aposentado, Ma Ri continuou trabalhando para o pai. Eram amigos, mas do que patrão e empregado.
– Seu pai morreu, senhorita!
– O que? – disse Joo Mi levando a mão a boca. Sentiu que o mundo havia cavado um buraco escuro e a mantinha lá. Sentiu seus pés tremerem e seu corpo chacoalhou diante daquela notícia devastadora. – Foi o vírus que todo mundo tá falando? Onde… Onde ele está?
– Deixei ele no hospital. Tinha muita gente lá e todos estavam doentes. Até os médicos e enfermeiras. Disseram que não havia cura. Se você pegou a doença, simplesmente morre. Se não pegou, é porque é imune.
– Por que não me ligou, Ma Ri? – reclamou Joo Mi, enxugando as lágrimas que brotavam em seus olhos. –
– Eu tentei, senhorita, mas estava sem sinal. Estava tudo em caos. Eu voltei pra casa e encontrei os outros empregados mortos. Então achei que você também poderia estar morta.
Joo Mi sentou-se no sofá que o pai costumava usar, enquanto absorvia a notícia de que seu pai falecera. O que ela faria no mundo sem ele?
– Está muito perigoso. – disse Ma Ri, com lágrimas nos olhos. – Os sobreviventes estão saqueando coisas, matando outros sobreviventes. Aqui não é seguro, srta Joo Mi. Dizem que JinJu…
– Eu ouvi sobre isso no rádio! – declarou Joo Mi, lembrando do aviso na TV e da transmissão no rádio – Você acha que devemos ir pra lá?
– Acho que a senhorita deve ir. – falou Ma Ri, com um tom estranho na voz – Eu sou velho demais pra sair dessa casa.
– Mas Ma Ri, por favor, eu não posso ir sozinha. – desabafou Joo Mi – Você me conhece… sabe que eu… sabe que eu tenho… problemas…
– Eu não vou… – falou Ma Ri, resoluto e simplesmente sumiu num dos corredores, deixando-a sozinha no centro da sala.
– Ma Ri! – gritou Joo Mi, tentando chamar o motorista – Oh, Deus! – disse Joo Mi a si mesma, sem saber o que fazer. Poderia ficar ali com Ma Ri. Certamente a mansão tinha as portas reforçadas, mas não havia muros e se eles fossem saqueados? Não era seguro ficar sozinha numa mansão como aquela. Por que ela tinha que ser imune?
Pensou em pegar mantimentos, mas isso significava retirar de Ma Ri aquilo que poderia mantê-lo por alguns dias. Era injusto, não era certo. Então, sem nem mesmo procurar o velho motorista, Joo Mi saiu da mansão e entrou no seu carro.
Olhou no painel e percebeu que havia pouca gasolina. Não era o suficiente para chegar a JinJu, e ela também não sabia se aquilo era necessário. Então, deu a volta nos jardins e tomou a estrada para seu apartamento, onde poderia ficar a salvo.
Começou a acelerar sem saber bem porquê. As lágrimas caiam pelo rosto ao lembrar do pai. Ela nem sabia onde o corpo de seu pai estava. Precisava dar um jeito de enterrá-lo. Ele gostaria disso…
Estava tão absorta em seus pensamentos que não viu quando um ônibus cruzou seu caminho. Com o susto, tentou desviar, mas seu volante travou. Sentiu o impacto em cada fibra do seu ser.
Seu corpo foi jogado para frente, contra o volante. Depois disso, a gravidade parecia errada. O carro estava capotando e seu corpo parecia uma bola perdida no meio do caos. Quando o carro finalmente parou, Joo Mi se viu pendurada.
Um filete de sangue lhe escapava pela boca. Tentou destravar o cinto de segurança, mas simplesmente não teve forças. Sua perna estava dolorida, mas a pior dor estava em seu peito. Alguma coisa não estava bem. Talvez tivesse quebrado alguma costela.
– Socorr… – tentou gritar, mas não conseguiu puxar o ar suficiente para sair algum som. Ficou desesperada ao perceber que havia um cheiro forte de gasolina. Escutava fagulhas em algum lugar do motor, mas a princípio não havia incêndio.
Escutou passos perto de onde estava. Pelos vidros quebrados do automóvel, viu que pernas estavam se aproximando.
– Socorro – disse ela, novamente, puxando o ar com mais força. Seu corpo todo doía a cada inspiração.
Então a porta se abriu e o motorista se abaixou. Quando Joo Mi viu quem era, seus olhos se arregalaram e seu corpo tremeu em convulsão.
– Ora, ora, ora… se não é a promotora?
Aquela voz, carregada de cinismo assustaria qualquer um, principalmente a Joo Mi que sabia muito bem quem ele era.
– Oh Nan!!! – disse ela, em desespero. Só então percebeu que o ônibus era o da penitenciária.
Oh Nam destravou o cinto de segurança e Joo Mi caiu desajeitada. Antes que pudesse fugir, Oh Nan segurou-a pela cintura e retirou-a do carro.
– Eu estou bem… posso me virar sozinha agora! – disse ela, tentando se desvencilhar dos braços dele.
– Acho que você não sabe o que está acontecendo, não é?- disse ele, puxando-a em direção ao ônibus. O maldito ônibus era tão reforçado que só havia uma pequena marca do acidente, enquanto seu carro estava completamente perdido.
– Oh Nan, deixe-me ir… – disse ela, sentindo gosto de sangue em sua boca. Ela só conseguia andar, porque ele segurava sua cintura e a guiava. Não fosse por isso, tinha a certeza de que não poderia dar um passo sequer.
– Se eu te deixar você vai morrer antes que anoiteça, amor… – falou ele, empurrando Joo Mi para dentro do ônibus.
– Eu preciso achar meu pai – disse ela, sentindo a dor no peito piorar.
– Você está em choque! – disse Oh Nam, fazendo Joo Mi se sentar no primeiro assento, no lado da janela. Depois disso, ele travou o cinto de segurança dela. Então, abriu uma bolsa preta que estava aos pés dela, tirou uma garrafa de água, abriu-a e passou para ela. – Não sei se você tem alguma concussão interna, mas é melhor tomar água, até conseguir alguma coisa pra você…
– Eu não quero morrer… – disse ela, chacoalhando todo o corpo. – Por favor, Oh Nan… não me mata, por favor, eu não quero morrer…
– Você não vai morrer… – disse Oh Nam, colocando bandagens sobre a testa de Joo Mi. – É só não dormir…
Depois disso, Oh Nam fechou a porta do ônibus, sentou-se na direção e passou a dirigir em silêncio.