3 – A Beleza da Alma – Honestidade

Capítulo 3 – Honestidade

Quando Anya resolveu enfim ir para casa, estava exausta. Seu horário era até as cinco horas da tarde, mas já passava das sete quando se levantou de sua mesa para ir embora.

Foi até a sala de Do Jin, mas ele não estava mais lá. Somente ela e o segurança estavam naquele andar. Então, desceu até o primeiro andar e dali utilizou o acesso para ir até o centro comercial do prédio que era nos fundos para a outra rua principal.

Era a maior loja de departamento da cidade e pertencia ao conglomerado Do Jin. Assim, entrou numa das lojas e escolheu um traje parecido com o que Karina estava vestindo. Depois, escolheu um sapato bonito, mas confortável e pagou com o cartão que Karina lhe dera.

Honestidade
Indo às compras

Era constrangedor gastar seu primeiro salário com roupas, quando ainda nem tinha feito nada pela empresa, mas concordou com Karina que teria que mudar de estilo se quisesse se manter naquele emprego.

Anya não entendia como a sociedade era tão apegada à aparência.

Talvez fosse assim também se ainda tivesse o rosto que tinha aos quinze anos, mas agora aos vinte e um, só o que pensava era em sobreviver, preferencialmente no anonimato, ao invés de ostentar roupas de classe e sapatos de marca que eram mais caros do que seu aluguel. Para ela, isso não era honestidade.

Logo depois de receber as bolsas com seu novo traje, Anya se encaminhou para a rua. Sentiu aqueles olhares para ela, afinal de contas, ser a secretária executiva do Dr. Do Jin não havia tirado as cicatrizes de seu rosto. 

Caminhava para o ponto de ônibus quando percebeu um carro estacionando ao seu lado. Anya se assustou ao ver que era o próprio Dr. Do Jin, dirigindo um veículo importado.

De dentro do carro, ele abriu a porta do carona para Anya e ordenou:

– Entre, vou te levar pra casa… – disse ele, sem pestanejar.

– Não é necessário, doutor… o ponto de ônibus é aqui perto…

– Entre, agora!

Diante daquela ordem, Anya entrou no luxuoso carro e fechou a porta. Imediatamente, Do Jin acelerou, afastando-se rapidamente da empresa e do centro comercial.

– Onde você mora? – perguntou ele, sem se distrair do trânsito caótico naquele horário.

– No Burbúrio. – disse ela, com vergonha. O Burbúrio era o pior bairro da cidade e para melhorar, Anya morava no pior cortiço. Não sabia como poderia dizer isso a ele.

O cortiço em que morava era como uma vila, todo mundo conhecia todo mundo. E sua vila era um antro de drogados, traficantes, prostitutas, gente da pior laia da cidade. Ainda assim, havia também gente trabalhadora, que não tinha condições de morar em outro lugar.

– Doutor, realmente, não há necessidade de me levar até em casa. Tenho certeza de que o senhor está desviando muito do seu caminho.

– De fato. Mas você é minha secretária, Anya. Como você pôde perceber, eu gosto de conhecer os funcionários mais próximos de mim, e não há nenhum funcionário mais próximo do que você nesse instante. Por isso, preciso saber tudo sobre você: onde mora, com quem vive, o que faz, o que gosta de fazer. É assim que eu procedo, Anya. Então, espero que concorde com isso. Eu iria fazer uma visita a sua casa noutro dia, mas como vi você na rua e hoje tenho tempo, imaginei que era o dia perfeito.

– Visita? Você vai me fazer uma visita? – perguntou ela, surpresa.

– Sim… já lhe disse…

– Não, senhor… o senhor não vai me visitar. – determinou ela, olhando-o de soslaio.

– E por que não?

– Eu tenho uma amiga com a qual divido o aluguel. E ela é extremamente bagunceira. O senhor não irá me visitar sem ter me dado a chance de organizar a bagunça, não mesmo.

– Está bem, senhorita – disse ele, sorrindo, – mas é melhor se preparar, irei visitá-la em breve.

– Tudo bem, será bem recebido, senhor, mas devo dizer que meu apartamento é humilde. – respondeu Anya, achando estranho aquele procedimento. Era extremamente invasivo um chefe querer visitar sua secretária em sua casa.   

– E ainda tem que dividir o aluguel com sua amiga, é? Ou sua amiga é… sua namorada?

– Não, senhor… – dessa vez foi Anya quem sorriu.

– Bem, tenho certeza de que agora com o seu salário, você poderá morar sozinha no seu próprio apartamento.

– Eu não faria isso, senhor – disse ela, enquanto admirava a forma como ele dirigia. Desde seu acidente, jamais entrara num carro novamente e achou que teria medo ou insegurança, mas gostava da forma como ele dirigia. Dava-lhe segurança. – Minha amiga, Beth, precisa de mim. Ela tem um namorado do qual quer se livrar e ele vive querendo morar ali conosco. Ele só não faz isso porque tem medo de mim. Acha que sou uma espécie de monstro ou coisa parecida. Às vezes, essa cicatriz tem alguma serventia… – disse ela, animada, mas quando olhou para Do Jin viu que ele tinha um semblante sério.

– Ontem, quando me falou sobre sua falta de esperança, você comentou que havia uma pessoa cruel que queria escravizá-la. Por acaso é esse homem, o namorado de sua amiga?

– Não, doutor. – disse ela, sentindo a voz embargar. Por que ele queria saber tanto sobre sua vida. – Na verdade, é minha mãe, o nome dela é Avana. Avana Medeiros.

– Sua mãe? Justo sua mãe? Ela não deveria te ajudar…? – perguntou Do Jin, perplexo.

– Bem, não a minha mãe. Ela… ela me culpa pelo acidente com meu pai. – revelou Anya, constrangida. Nunca imaginou que um chefe fosse tão invasivo na privacidade de alguém como Do Jin.

– Mas você não teve culpa, teve?

– Minha mãe não consegue aceitar. Acho que ela nunca gostou de mim e agora que meu pai se foi, ela me trata com desprezo.

– Sinto muito… – disse ele, com um semblante condescendente.

– Tudo bem. – respondeu ela, virando o rosto para fora, não queria que ele visse que seus olhos marejaram. – Doutor, porque o senhor é tão desconfiado com as pessoas. Por que quer saber tanto sobre mim? Tem medo que eu possa ser uma golpista, ou algo assim?

– Há anos que eu assumi a presidência de minha empresa. A empresa é da minha família e eu tenho dois tios que esperam que eu falhe para reclamar seus direitos. Acontece que meu avô colocou no seu testamento que a empresa é minha, mas se eu não puder mantê-la, meus tios poderão tirá-la de mim.

Do Jin estreitou os olhos e Anya percebeu que o músculo em sua mandíbula se retesou, enquanto continuava a falar:

– Eles já tentaram de tudo, inclusive boicotar os eventos das lojas, as promoções realizadas, já tentaram desviar uma frota de caminhões contendo meus produtos, enfim, coisas que não posso provar que foram eles, mas eu tenho certeza disso.

– Isso é terrível, doutor! – disse ela, com pena dos problemas familiares do poderoso Do Jin e entendendo o porquê de tanta desconfiança e porque ele valorizava tanto a honestidade.

– Desde que eu assumi a presidência, eu tive mais de 10 secretárias. Muitas acabaram pedindo a demissão por conta do meu jeito invasivo e controlador, espero que não se importe com isso. Outras, descobri que vazavam informações para meus tios. Uma delas chegou a desviar 400 mil da verba da presidência. Então, eu espero que você compreenda, Anya, que é muito difícil para eu confiar em alguém. Você foi um achado!

Anya sentiu seu coração palpitar ao escutar aquilo. Ela sempre foi rejeitada por todos. Sempre foi humilhada e desprezada. Nunca em sua vida imaginou que alguém lhe dissesse que ela era um ‘achado’.

– Como sabe que sou uma pessoa confiável, doutor? – perguntou ela, curiosa.

– Sou muito bom em ler pessoas. – disse ele, virando para ela um instante. – Vi no seu rosto, no seu olhar, no seu jeito, até nas suas roupas. Você é honesta em tudo o que é. E honestidade é uma qualidade muito valorosa na minha opinião.

– Mas não se importa que eu seja deformada? – perguntou ela, sabendo que poderia não gostar da resposta.

– Você não é deformada. Tem uma cicatriz muito feia, isso é verdade, mas confesso que isso pode vir a calhar. Eu espero que você possa espantar meus inimigos de medo assim como faz com o namorado de sua amiga… – disse ele com um ar brincalhão e Anya não conseguiu se sentir ofendida. Era a única pessoa em sua vida que conseguiu fazer uma piada de seu rosto ao invés de demonstrar pena ou asco.

Depois de meia hora conversando, enquanto o tráfego da cidade impedia o avanço com ligeireza, Do Jin estacionou na frente de um prédio muito velho, feio, mofado, que tinha um pátio interno de onde ele podia ver as figuras mais esquisitas. Um grupo de jovens estavam se drogando no que fora uma fonte há muitos anos atrás.

– Você mora aqui? – perguntou ele, incrédulo.

 – Moro, sim. Apartamento 202. As escadas são externas. O prédio todo foi planejado para ser uma vila. Na verdade, tornou-se um cortiço, então, é melhor o senhor avisar quando vier me visitar e espero que o faça durante o dia ou correrá muito risco, doutor.

 – Bem… está bem, então… – disse ele, saindo do carro. Anya se empertigou sem saber o que fazer. Quando ia abrir a porta, viu que Do Jin estava abrindo-a para ela. Ela saiu do carro sentindo-se corada.  – Algum problema? – perguntou ele, ao ver que ela estava constrangida.

– Não é nada… boa noite, doutor! – disse ela, afastando-se rapidamente dele, antes que ele mudasse de ideia e quisesse visitá-la. Ao passar pelo pátio central, onde os garotos mal encarados estavam sentados, fumando alguma coisa mal cheirosa, viu que eles estavam prestando atenção nela.

– Quem é o do carrão, monstrinho? – falou Douglas, um dos garotos que Anya conhecia.

Anya não respondeu e apressou o passo. Em seguida, subiu a escada que dava acesso ao corredor do segundo andar, onde ficava a porta de seu apartamento. Quando olhou para trás, viu que Do Jin ainda estava de pé, olhando para ela.

Assim, sem jeito e nervosa, Anya abriu a porta e a fechou atrás de si. Sua amiga Beth estava tomando café na pequena bancada da cozinha e estava com os olhos vermelhos de choro e uma nova marca de ferida no lábio inferior.

A fiel amiga Beth

– Ah, Anya, onde você estava? Eu precisei tanto de você, amiga! – disse Beth, tomando mais um gole do café.

Ainda nervosa, Anya abriu a cortina de sua janela para olhar para fora, mas Do Jin estava dando a partida no carro e logo sumiu de sua vista.

– Eu estava no trabalho.

– Que trabalho? Você conseguiu convencer a Maggie a te dar o serviço de garçonete? – perguntou Beth.

– Não. Não tivemos tempo de conversar ontem, mas eu consegui um bom emprego na Do Jin. – disse Anya aproximando-se da amiga. O corte no lábio inferior denotava a presença do namorado brigão. – Júnior esteve aqui?

– Uau, na Do Jin. Eu queria muito trabalhar lá. Eu vi que eles estão precisando de copeiras. Então, será que se eu tentar, não consigo também? – perguntou Beth, animada.

– Talvez sim, mas não foi o emprego de copeira que eu consegui – disse Anya, sorrindo. Pela primeira vez em sua vida, estava com orgulho. – Sou a secretária do Dr. Kim Do Jin.

– Ah, tá, conta outra – disse Beth, bebericando mais um gole.

– É verdade… juro por Deus… – disse Anya. – Foi ele quem me trouxe de carro até em casa.

Beth sorriu, mas depois se arrependeu, pois seu lábio doeu.

– Não me faça rir, minha boca tá machucada. O Júnior me bateu de novo.

– Já te disse para terminar com ele. – disse Anya, sentando-se na frente da Beth.

– Quer que eu morra? – falou ela, entristecida.

– Não, amiga. Você é minha melhor e única, amiga. – disse Anya, segurando a mão de Beth. – Você não pode morrer, mas isso vai acabar acontecendo se você continuar com aquele idiota. Você deve denunciá-lo. Tenho certeza de que ele some depois disso.

– Ou me mata de uma vez… – disse ela, aborrecida. – Mas fala, onde você estava?

– Já lhe disse: na Do Jin.

– Verdade? – disse Beth, olhando-a de soslaio.

– Sério.

– Você é secretária do famoso Dr. Kim Do Jin? Ai, Anya, eu tenho dó de dizer isso, mas eu tenho certeza de que você jamais conseguiria esse emprego. Você não tem cacife, amiga… – disse Beth, com uma cara de pena. – Nem você, nem eu temos…

– Pois é, não sei como isso foi acontecer. Ligaram pra mim, dizendo que eu tinha uma entrevista para a vaga de secretária executiva da Do Jin, parece que minha mãe arranjou. Quando fui à entrevista, eu confundi o Dr. Do Jin com o Gerente de Recursos Humanos e desatei a falar. Após isso, ele resolveu me contratar. E foi muito gentil, apesar de criticar minhas roupas e ficar tocando minha cicatriz.

– Você está falando sério? Foi contratada como secretária?

– Sim, é verdade… – Anya sorriu. Ela é Beth eram amigas desde o fundamental. Beth sempre foi tresloucada e nunca estudou muito e se foi passando era graças à Anya.

– Ah, sinceramente, amiga. Meu Deus, você foi trabalhar assim? Depois de ser contratada como secretária na Do Jin?

– Era a minha melhor roupa. Mas eu comprei um conjuntinho e amanhã vou tentar comprar outras coisas.

– E com que dinheiro, Anya? Já estamos na pindaíba. – disse Beth, olhando para ela com preocupação. – E você ainda está me devendo metade do aluguel que eu paguei para você no último mês.

– Eles adiantaram meu salário. Não tive tempo para ir ao banco, mas juro que irei te pagar amanhã e eu ficarei responsável pelo aluguel de agora em diante.

– E o salário é bom? – perguntou Beth, olhando para ela.   

– É um absurdo. Você vai se espantar quando eu disser….

– Então… É verdade que aquele gato do Dr. Do Jin te trouxe até aqui? – perguntou Beth, lembrando do que Anya lhe dissera.

– É… ele me trouxe até aqui de carro.

– Vai, conta outra. O famoso Dr. Do Jin no Burbúrio?

– Na verdade, ele queria visitar o nosso apartamento, mas eu lhe disse que não viesse. Você é muito bagunceira, Beth, já pensou se ele visse suas calcinhas e sutiãs jogados por aí?

– O Dr. Do Jin no nosso apartamento? Ah, Anya, fala sério? Ele não disse isso, nem trouxe você aqui. Confessa.

– Trouxe, sim. Mas se quer uma prova, fala com o Douglas e a gangue dele lá embaixo. Eles viram, até perguntaram quem era o cara.

– E porque ele fez isso? Porque trazer a secretaria dele em casa? – disse Beth, finalmente acreditando.

– Do Jin é obcecado com os funcionários dele, especialmente a secretaria. Pelo que entendi, ele já foi traído diversas vezes, porque tem alguns inimigos, parentes dele, que querem lhe tirar a empresa. Acho que foi por isso que ele me contratou, porque percebeu que eu não era ninguém infiltrado e era uma pessoa em quem ele pode confiar. Não sei exatamente o que ele viu em mim, mas eu agradeço. Eu estava a ponto do desespero, Beth e iria retornar pra minha mãe.

– Para aquela velha coroca, não. Se você tivesse que voltar pra lá, eu iria dar um jeito. Conseguir um empréstimo com o Júnior ou outra coisa.

Anya fez uma caricia com o polegar na mão de Beth.

– Você é a irmã que eu nunca tive, Beth… Deus queira que tudo dê certo nesse emprego. Eu sei que não vai durar… e não quero criar muitas expectativas, mas quero ficar lá tempo suficiente para ajeitar a minha vida e a sua. Quem sabe, comprar um apartamento.

– Comprar um apartamento? – perguntou Beth, surpresa – Mas afinal, quanto é o seu salário?