Capítulo 5 – Cela
Amir Ylmaz já estava desistindo quando finalmente colocou o padrão certo na tela oculta do porão, fazendo a porta falsa se abrir.
Como previra, encontrou seu irmão sentado na sala de controle, observando atentamente aos monitores da Cela onde estava Ayla.
– Por alá, Demir! – reclamou o irmão, preocupado com Demir. – Afife falou que você está comendo e dormindo aqui. Só sai para tomar banho.
– Estou observando. – respondeu Demir, simplesmente, sem tirar os olhos do monitor. Na tela, ele conseguia ver o rosto de Ayla em um zoom.
De fato, Demir parecia outro homem. Sempre muito bem alinhado, parecia cansado, com olheiras e visivelmente abatido.
– Ayla não vai sair daí! – Vociferou Amir, observando a sala escura. O vidro era transparente, por isso, mesmo estando na penumbra, era possível ver que Ayla estava bem no canto, sentada com os braços ao redor dos joelhos. A cabeça encostada na parede fria. Ela também não parecia estar bem. Seu olhar parecia vazio e profundamente triste e melancólico.
– Ela não reclama! Nunca reclama! – respondeu Demir, levantando-se para se espreguiçar. -Imaginei que ela choraria, espernearia, gritaria, jogaria coisas contra o vidro. Mas ela obedece cegamente a todos os sinais e passa o dia quieta, no canto da cela. Chora, come pouco e dorme pouquíssimas horas.
– E daí? – perguntou Amir, um pouco irritado com o irmão. Aquilo tudo havia passado de uma vingança para uma verdadeira obsessão.
– Você não acha que a esta hora, ela teria revelado sua verdadeira face? Não digo nos primeiros dias, mas já faz um mês!
– E daí? – perguntou Amir, novamente, sem entender o que o irmão queria dizer.
– Ela… ela parece… é claro que não é… mas parece… sei lá… parece…
– Fala, Demir… você está muito esquisito. – respondeu Amir. – Preciso do meu irmão racional e prático aqui… preciso discutir algumas coisas com você!
– Ela parece inocente! – respondeu Demir, finalmente, meio assustado com as próprias palavras. – E se… e se ela estiver falando a verdade? Se ela foi drogada e não se lembra do que realmente aconteceu? Ela não parece o tipo de pessoa que faria aquilo. Ela está muito quieta. Afife entra lá todos os dias e coloca a comida. Ela não fala nada. Outra pessoa tentaria alguma coisa: fugir, empurrar Afife, conversar ou tentar convencê-la a fugir, mas ela não fala uma só palavra… isso não é normal.
Amir franziu o cenho.
– Ela está te manipulando… psicopatas são assim. Eles manipulam para que você faça o que eles querem. É isso o que ela está fazendo.
– Eu não acho que seja isso! – respondeu Demir, passando a mão nos cabelos desalinhados. – Acho que ela se convenceu de que merece esse castigo. Acho que é isso… só pode ser isso…
– E daí, Demir? Você quer soltá-la agora? Depois do que ela fez? Mesmo que ela não se lembre, isso não muda o fato: ela assassinou Reyhan. Ela merece o castigo. E nós merecemos continuar nossas vidas… livre desse inferno. Mas você está fazendo o oposto: você está cada vez mais obcecado com ela, imerso no universo DELA!! E esquecendo do seu mundo e das suas responsabilidades. Nusfat me ligou. Disse que você já faltou em duas reuniões importantes do conselho. E a mesa diretora já cogitou a possiblidade de tirar a presidência de você!
– Que tirem! Isso não me interessa mais. O hospital está bem, sua firma está bem. Já trabalhamos demais por isso… Eu posso tirar um ano sabático.
– Esse não é você! Antes de Reyhan morrer, você daria o sangue pelo hospital…
– É… e talvez isso tenha causado a morte dela. Eu deveria estar com elas naquele dia. Reyhan insistiu. Ela não queria ficar sozinha com a mãe. Ela precisava do seu pai e eu não estava lá por ela. Eu tenho uma grande parcela de culpa.
– Irmão… você vai se arrepender se sair da presidência. Você gosta das coisas feitas do seu jeito. Nasceu pra ser o presidente… é um líder nato… então…
– Está bem… está bem… – falou Demir, tentando encerrar aquela discussão. Ele realmente não tinha vontade de ir trabalhar, porém, sabia que não poderia ficar muito tempo longe do seu posto, pois o hospital já esteve em situação muito ruim anteriormente e sem ele, as coisas poderiam voltar às vacas magras. – Vou tomar um banho… irei ao hospital em seguida.
– Espere… precisamos discutir outra coisa. Algo que pode se tornar um problema. É o Dr. Aslan, o advogado de Ayla. Ele esteve no Hospital com um mandato. Tivemos que entregar os vídeos de segurança do dia em que ela esteve lá. Uma das câmeras a gravou entrando em seu carro. A polícia deve vir aqui, revistar nossa casa e devem levar você para tomar seu depoimento.
– Já esperávamos por isso. – respondeu Demir, calmamente. – Por isso, construímos essa cela escondida. A polícia não vai conseguir entrar.
– Ainda assim… isso me deixa nervoso. Deveríamos ter construído a cela na fazenda.
– Já falei que vou doar a fazenda para o meu sogro. Ainda não fiz a papelada, mas é questão de tempo até ver tudo isso.
– Eu não concordo com isso. O pai de Merien é um canastrão. Ele tem uma lista de denúncias contra ele. Ele não merece a fazenda.
– A fazenda foi um presente para Merien, para ela criar os cavalos dela. Prefiro que o sogro fique com ela. E fazer a cela na fazenda não mudaria muito o que vai acontecer. Provavelmente, a polícia conseguirá um mandato para revistar todos os meus imóveis em Istambul, inclusive a fazenda.
– Isso não te deixa nervoso? Deveríamos matá-la, incinerar o corpo e jogar as cinzas fora, antes que isso se torne um problema.
– Ei… você é o advogado aqui, deveria mesmo me dar esse conselho: a pena de homicídio não é maior do que a de sequestro? – perguntou Demir, surpreso com a fala de Amir.
– Sem corpo, sem caso, Demir… Nós podemos nos ferrar muito por causa dessa bruxa… – disse ele, apontando para Ayla, inerte em seu próprio mundo, sem escutar nada do que discutiam.
Ayla sucumbia aos poucos. Nos primeiros dias, manteve sua esperança, acreditando que Demir Ylmaz iria mudar de ideia, mas percebeu que os dias foram passando e não havia sinal de sua misericórdia. Afife vinha todos os dias quando o sinal verde apitava. Ayla entregava a bandeja e os talheres para ela e recebia em troca uma refeição: um pão com manteiga e um copo de leite. Sorvia cada gota daquele leite, pois sabia que ausência de luz comprometeria a vitamina D de que tanto necessitava para sobreviver. Porém, não era só isso. Sem comer carne ou qualquer outra proteína, sabia que seu corpo logo daria os sinais de sua falta.
Se sentia fraca, exausta.
No início, chorava muito, por longas horas, agora, não tinha nem mais vontade para chorar. Só o que conseguia era ficar parada, contemplando o vazio e arrependendo-se de ter saído naquela noite fatídica.
Ela sabia que não seria capaz de matar uma criança em sã consciência, mas sabia que algumas drogas como Rohipnol (o famoso boa-noite-cinderela) podiam comprometer sua consciência e sua moral.
Achava que só podia ter sido drogada. Acreditava nisso com todas as suas forças, mas isso não mudava quase nada, pois drogada ou não, ela havia matado uma criança e isso era imperdoável. Enquanto esteve na cadeia, sobreviveu por crer que era inocente, mas isso morria pouco a pouco nela. Ela era culpada, não havia outra explicação. Mesmo sob o efeito de drogas, ela havia matado uma criança.
Seu desejo em comemorar sua aprovação na faculdade havia terminado na destruição de uma vida e de uma família e isso era imperdoável aos olhos de Deus e dos homens. Então, sabia que merecia aquele castigo. Sucumbir na escuridão, só e abandonada, desnutrida, sem alma… era o que assassinos de criancinhas mereciam.
Por isso, decidiu aceitar aquele fardo e entregar-se plenamente ao castigo que Demir Ylmaz havia planejado. Se sua morte lenta e dolorosa apaziguasse um pouco do ódio e da vingança que ele trazia consigo, ao menos, aquela pena sem sentido faria algum bem. E sua filhinha estaria a salvo.
O sinal amarelo disparou de repente, tirando-a do seu torpor. Estava fraca demais até mesmo para tirar a roupa. No segundo dia, quando tirou o terninho que vestia, havia recebido apenas um vestido branco amarelado para usar e calcinha.
E nos dias seguintes, foi só isso que recebeu.
Levantou-se com dificuldade e virando-se para a parede dos fundos, livrou-se das roupas, colocando-as em um cesto, junto com as roupas de cama.
Em seguida, escutou a porta de vidro se abrir e Afife entrar e sair rapidamente, como sempre. Depois disso, um poderoso jato de água a atingiu. Agora já havia se acostumado àquele jato frio e desumano quase cortando sua pele frágil e lavando seus pensamentos mais sombrios.