Vingança e Redenção – 4 – Nini

Capítulo 4 – Nini

A viagem de carro até a casa do Dr. Demir foi em silêncio. Ayla pensava que a qualquer momento acordaria na prisão e que aquilo não passava de mais um pesadelo, mas já tinha experiência com pesadelos reais para saber que aquilo estava mesmo acontecendo.

– Há testemunhas que me viram entrando no seu carro. O que o senhor irá fazer quando o meu corpo aparecer?

– Assim como a minha esposa Merien, seu corpo não irá aparecer. – respondeu ele, sem tirar os olhos da direção.

– Então é isso? – perguntou ela, mais a si mesma. Sua vida tão breve resumia-se a isso. No final, se sua filha pudesse ter uma vida digna, talvez tivesse cumprido seu papel. Ainda assim, não conseguia deixar de sentir pena de si mesma. Ela tinha tantos planos. Pareciam ridículos agora.

– Quer me dizer onde enterrou o corpo da minha esposa Merien? Se me disser, posso te dar algumas horas de claridade por dia, como compensação.

– Se eu soubesse, eu lhe diria… – respondeu ela, com tristeza na voz. – Eu falei a verdade quando disse que não me lembro de nada… mas sei que eu jamais faria isso. Eu sou inocente de alguma forma! Você está castigando uma pessoa inocente.

– É mesmo? – perguntou ele, com ironia.  

– Sei que sou… preciso ser… eu não posso ter feito aquilo com sua filha. Jamais faria… jamais… sinto muito por você ter perdido sua filha, mas eu não…

Demir freou o carro bruscamente e o guiou para o acostamento.

– Você é inocente? Como pode dizer isso como se realmente acreditasse nisso? Você matou minha filha. Apertou o pescoço de uma criança até que ela não pudesse mais respirar. E ficou assistindo a vida da minha filhinha se esvair. Você não merece respirar… você não merece viver… nem mesmo a morte você merece…

Ayla sentiu as lágrimas caindo livremente por seu rosto. Podia sentir todo o rancor, toda a fúria que havia no coração daquele homem sombrio pela dor da perda. Não podia julgá-lo. E se… e se ela realmente tivesse machucado a menina, como as provas pareciam indicar?

Até agora, ela não queria acreditar nisso. Sentia-se inocente e injustiçada. Mas e se tivesse feito aquilo? Então… então merecia aquele destino?

– Sinto muito… sinto muito… se eu machuquei Reyhan… eu sinto muito…

– Se machucou? Você é uma peça rara!!! Deveria ter pensado em fazer teatro ao invés de medicina… certamente tem talento pra isso. – disse ele, acelerando novamente o carro.

Havia uma estrada de acesso a mansão que atravessaram depois de passar por gigantes portões com o brasão dos Ylmaz. Em cada lado da estrada, havia um bonito bosque ladeado por jardins bens cuidados.

Quando a visão da mansão se abriu para Ayla, ela suspirou. A casa era tão bela quanto imaginou que fosse. Na entrada, havia quatro colunas altas em estilo neoclássico. Parecia tirada de um conto de fadas, só que para ela, seria mais um conto de terror. Assim que o carro parou, Dr. Demir saiu, deu a volta no carro e abriu a porta do carona para ela.

Ela ainda estava agarrada ao banco e tinha medo de sair. Sabia o que lhe esperava no interior daquela mansão. Mas também sabia que sua querida Nimet estava em algum lugar daquela casa. Tinha um certo medo de encarar sua filha, agora que tinha a oportunidade.

– Lembre-se de que sua filha não pode saber que você é sua mãe, ou o nosso acordo está cancelado. E vocês sofrerão as consequências.

– Sim, senhor… – falou Ayla, sentindo-se nervosa por finalmente ver sua filha. Ao sair do carro, novamente, sentiu-se mal e teve que encostar no veículo.

– Entre – disse ele, indicando o caminho com a mão. E quando ela passou, ele colocou uma mão em sua coluna, o que lhe deu uma certa confiança. Tinha medo de desmaiar a qualquer momento. Seu coração pululava em seu peito.

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Antes que Ayla colocasse a mão na maçaneta, a porta do palacete se abriu. Uma mulher de meia idade, olhou para ela de alto a baixo.

– É ela, senhor? – perguntou a mulher.

– Sim, Afife, é ela… – disse ele. – Srta Aksoy, esta é Afife. Ela é minha governanta. Antes disso foi minha babá. É quase uma mãe para mim e Almir Ylmaz. Você o conhece, é meu irmão, e foi o promotor no seu caso.

Sim, Ayla reconhecia. Nos olhos de Almir, também havia os traços de ódio e vingança do irmão.

– Olá… – disse Ayla, discretamente, sem saber exatamente o que Afife sabia dela.

A mulher deu as costas para ela, sem cumprimentá-la. E os dois entraram na imensa mansão, passaram pelo hall de entrada até uma grande sala de visitas com móveis belamente decorados.

– Afife, por favor.  Traga Nimet por um momento. Sente-se, Ayla… – disse Demir, guiando-a até um belíssimo sofá.

Não era má ideia. Se não se sentasse, talvez desmaiasse ao ver sua filha. Ansiava por isso há anos. Queria muito poder dizer quem ela era, queria poder abraçá-la e beijá-la. Apenas vê-la não lhe parecia justo.

Escutou passos e se virou. Na escadaria, uma menina de oito anos agora descia de dois em dois degraus.

– Nimet, já falei pra ter cuidado, filha… você pode cair se descer assim… menina… – ralhou Dr. Ylmaz, mas a menina não lhe parecia dar bola, terminou os degraus e correu na direção dele, pulando em seu colo. – Pai… vamos no cinema, tem um desenho novo super legal pra ver, vamos, vamos?

– Quem sabe depois, Nini… quero te apresentar uma pessoa. O nome dela é Ayla e ela é a amiga do papai…

– É sua namorada nova, papai? – perguntou a menina com um sorriso agradável, parecia muito feliz e divertida.

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Nimet Ylmaz (Nini)

Ayla não conseguiu se segurar. Sua filha estava ali, a menos de um metro, sentada no colo do homem que iria enterrá-la na escuridão. E ela parecia amá-lo e o chamava de pai…Ela era linda.

Ayla tossiu para disfarçar e virou o rosto quando uma lágrima escorreu por seu rosto. Ela enxugou o rosto com as costas das mãos, mas a menina logo percebeu.

– Ela tá triste, pai… tá chorando… – disse a menina, virando o rosto do pai na direção de Ayla. – Você ralhou com ela, você é muito malvado ás vezes, pai.

– Não é isso, nini… – disse Ayla, engolindo a tristeza e tentou esboçar um sorriso. Seus olhos marejados a traíram e uma nova lágrima escorreu pelo seu rosto.  – Só estou feliz por fez uma menina tão linda e alegre como você!

– Você não me engana, mocinha! – disse a menina, com a mão na cintura. Talvez Afife ou o próprio Dr. Ylmaz diziam isso para ela. Sua filha era linda e esperta.

– Ela só está um pouco triste porque está com saudades da filha dela. Ela tem uma menina da sua idade, sabia Nini? – disse Dr. Ylmaz, fazendo uma carícia na bochecha de Nimet.

– Não fica triste, moça… eu dou um abraço em você.

Nini escorregou do colo de Demir e, aproximando-se de Ayla, deu-lhe um abraço.

Ayla envolveu-a com os braços, olhando para o Dr. Ylmaz, com medo de que ele a tirasse de seus braços.

– Não chora… – disse a menina, enxugando suas lágrimas.

– Nini é muito sociável. – disse Demir, enquanto apreciava a cena. – Também é muito sensível.

– Muito obrigada, Nini. Eu já nem estou mais triste com esse abraço. – disse Ayla, alisando os cabelos da menina e sentindo o calor do seu corpinho perto do seu. – Você é muito linda e muito esperta. Minha filha deve ser tão linda como você!

A menina sorriu e havia cumplicidade nos olhos das duas.

– Nini… vai pro seu quarto agora, depois eu vou lá, ver se você fez as tarefas da escolinha.

– Já fiz tudo… fiz um desenho bem bonito…

– Tudo bem, Nini, sobe agora, depois eu vou lá… – disse Demir.

– Tá bom, tá bom… já sei… assuntos de adulto, né… ? – perguntou a garota, olhando para os dois. – Até mais, Ayla… E não desista do meu pai… ele precisa de uma namorada nova! – disse a menina, sorrindo.

Quando Nimet subiu as escadas, afastando-se deles, Ayla teve a terrível vontade de ir atrás dela e abraçá-la forte, tão forte que ninguém jamais poderia separá-las.  Mas quando fez menção de realizar o ato, Demir também se levantou e a segurou.

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Ela cambaleou, sem forças em suas pernas e descansou sua cabeça nos ombros daquele homem poderoso e vingativo, entregando-se completamente à tristeza.

– Pronto! – disse Ylmaz, assim que escutou a porta do quarto da menina se fechando no andar de cima. – Eu já cumpri a minha parte do acordo. Você já viu como está a Nimet. Tenha certeza de que eu a criarei como minha filha. Não faltará nada para ela e eu a amarei verdadeiramente. Está pronta para cumprir a sua parte?

Ayla enxugou as lágrimas e balançou a cabeça, assentindo com aquele acordo esdrúxulo.

– Venha… – disse ele, segurando-a firmemente em seus braços. Eles seguiram por um corredor escuro, até dar em uma porta reforçada, de ferro. Tirou a chave do bolso e a abriu.

Ayla percebeu que a porta abria para uma escada que descia para uma espécie de porão.

– O porão é acusticamente vedado. Isso quer dizer que, não importa o quanto você grite, ninguém irá escutar você. Pense bem antes de descer essas escadas. Saiba que se você descer esses degraus, só irá subi-los depois de morta… é sua última chance. Pode sair agora se quiser… eu deixarei que viva.

– Se me deixar viver, o que vai fazer com minha filha? – perguntou Ayla, com um medo absurdo de morrer. Agora que vira sua filha, sentia muita vontade de viver para abraçá-la uma vez mais.

– Deve ter percebido que eu sou um bom pai para a sua filha. Mas se resolver viver, sua filha sofrerá no seu lugar.

– Você não ousaria machucar uma criança inocente… – disse Ayla, sentindo medo daquele homem a sua frente.

– Eu também imaginei que ninguém no mundo poderia machucar uma criança inocente, mas você me provou que existem pessoas que não deveriam estar vivas neste mundo. Se você estivesse morta, minha filha estaria viva…

Ayla engoliu em seco, sentindo todo o peso daquela sentença. Ela iria morrer. Iria morrer ali embaixo de uma maneira horrível.  De alguma forma, pensou que se ela realmente fosse culpada, ela merecia aquele jugo. Talvez fosse melhor assim. Se ela morresse, poderia pagar um pouco de sua culpa…

Depois disso, ela se desvencilhou de seus braços, passou por ele, e desceu as escadas. Embaixo, havia uma sala totalmente fechada, com alguns armários e ferramentas comuns de um depósito e um porão.

Será que ela ficaria ali? Mas em seguida, Demir aproximou-se de uma parede cinza, passou a mão em uma determinada região, em forma de um padrão. Só então, percebeu que havia uma espécie de tela touch screen camuflada na parede. Depois de um som mecânico, uma porta falsa se abriu na parede com um som de pressão de ar.

Um vento frio e condicionado saiu daquela próxima sala que estava na escuridão.

– É uma cela camuflada. Assim, nem a polícia encontrará você se vier aqui. Digo isso, para que você esteja muito ciente de que não poderá sair daqui nunca mais. Ainda estou te dando uma saída.

– Já me decidi… farei o que for preciso por Nimet… ou Nini, como você a chama – disse ela, respirando fundo, agora que o já havia aceitado aquele acordo macabro.

Depois que os dois entraram na sala, a porta novamente se fechou atrás deles e uma luz automaticamente se acendeu.

Só então entendeu como seria sua cela. Na sala onde estava, havia computadores com várias telas como se fosse uma sala de controle, e a parede do fundo ficava a ‘cela’. Havia uma grande parede de vidro dividindo a cela e a sala de controle.

O vidro era transparente e ela pode ver uma privada e uma pequena pia a um canto da cela e acolchoado, cobertor, lençóis e um travesseiro do outro lado.

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– Sim, é ali que você irá passar o resto de sua vida. Projetamos e construímos essa sala com todo o cuidado. Ela é inviolável. Você receberá ar condicionado, mas se….e quando quisermos, basta apertarmos um botão, e você morrerá sufocada. Você ficará totalmente na escuridão, por todo o tempo. Mas receberá o material que necessita todos os dias. Afife fará isso, mas você não deve emitir um só som ou mesmo tentar sair quando ela entrar para lhe entregar sua comida.

Pelo menos, terei comida, pensou ela, horrorizada com o que via. Porém, Demir continuava explicando a situação.

– Existem três tipos de sinais sonoros e visíveis na sua sala: verde, amarelo e vermelho. Então, uma luz verde se acenderá e… até o terceiro sinal audível, você deverá receber uma bandeja com comida. Em seguida, depois de 10 minutos, receberá o sinal novamente e deverá devolver a bandeja e os talheres sujos até o terceiro sinal. Se não o fizer, receberá uma punição. A sala está acondicionada em 23 graus, o que já é bem frio para uma mulher magra e aparentemente desnutrida como você, então, você não vai querer que a sala fique abaixo de zero, não é?

Ayla sentiu-se arrepiada. Ela era friorenta demais. E o cobertor da sala parecia fino demais para aguentar os 23 graus do ar-condicionado, imagine abaixo de zero?

– Todos os dias, às seis horas da tarde, você receberá outro sinal de cor amarela. – continuou ele – Você deverá tirar toda a sua roupa e colocá-la e um roupão junto com os lençóis e o cobertor, o acolchoado do chão é impermeável. A sala receberá um jato de água e sabão capaz de lavar e esterilizar você e a sua cela. Depois de dez minutos, você receberá jato de ar, capaz de secá-la e também à cela.

– Terei que ficar nua?

– Privacidade é um luxo ao qual você não terá direito. Acostume-se!

– Está bem… e o sinal vermelho, para que serve? – perguntou ela, levemente ruborizada. Ter que tirar toda a roupa diante de câmeras e talvez dele mesmo não era uma visão agradável.

– Espero que não precisemos usar o sinal vermelho. – continuou ele, com uma voz fria – Se fizer sujeira ou aprontar alguma coisa, o sinal vermelho será utilizado para sufocar você!

Com as pernas trêmulas, Ayla avançou e entrou obedientemente na cela de vidro.  Assim que entrou, a porta foi fechada. Depois de alguns segundos, percebeu que o vidro, antes transparente, começou a escurecer, deixando a sala toda em penumbra. A última coisa que viu foram os olhos fustigantes de Demir Ylmaz sobre si.

Ela olhou ao redor, sentindo frio, medo, tristeza e pena de si mesma. A escuridão não era totalmente plena. Bem no alto da parede ao lado da porta de vidro, havia as três luzes que ele mencionara. Aquelas pequenas luzes, quase imperceptíveis do lado de fora, deixavam o lugar na penumbra ao invés da completa cegueira. Ela agradeceu por aquilo. Assim que seus olhos se acostumaram, usou a privada. Ficou com muita vergonha, e tentou proteger sua moral de alguma forma, pois sabia que ele poderia ver tudo o que ela estava fazendo.

Tinha câmeras ocultas, tinha certeza, e provavelmente, o vidro ainda permanecia transparente para ele.

Do lado da privada, havia dois recipientes de plásticos transparentes. Num, havia 5 rolos de papel higiênico; no outro, 5 garrafas de água. Depois de lavar as mãos, abriu uma das garrafas e bebeu um grande gole de água. Se bebesse muito, logo teria que usar a privada novamente e passaria por aquela vergonha novamente, mas teria que se acostumar.

Aquele tormento era a sua realidade agora.