4 – A Beleza da Alma – Desconfiança

Capítulo 4 – Desconfiança.

– Dr. Do Jin, gostaria de revisar sua agenda para hoje?

Do Jin levantou o rosto dos papéis nos quais estava concentrado para olhar para Anya e imediatamente deteve-se em suas roupas.

Anya estava um pouco nervosa, pois não sabia o que ele acharia de seu novo look, mas parecia que ele aprovava. Entretanto, quando seus olhos chegaram aos pés, Do Jin franziu o cenho, pois ela calçava sandálias baixas.

Desconfiança
Capítulo 4 – Desconfiança

– Eu não consigo andar com saltos altos. – Desculpou-se Anya, sentando-se na frente da escrivaninha de Do Jin. Abriu o notebook no colo e rapidamente clicou no ícone do navegador, acessando a agenda virtual de seu chefe.  – Aqui está marcado um almoço com a Devos Center, uma reunião com Gil Bender às 14 horas e outro com o Amador do RH às 15h. Gostaria que eu incluísse mais algum compromisso? – perguntou ela, mas quando o encarou, percebeu que ele ainda tinha o cenho franzido. – Algum problema?

– Não, pelo contrário, como é que você consegue ter tanta habilidade com o computador se nunca trabalhou antes? Karina ficou impressionada com as suas habilidades ontem.  – falou Do Jin, com uma nota de desconfiança.

Anya sorriu, imaginando que aquilo era como um elogio disfarçado e sentiu orgulho de si mesma.

– Meu pai tinha uma empresa de manutenção de computadores. Eu o ajudava nos finais de semana. Eu sempre imaginei que quando terminasse o Ensino Médio, eu iria estudar Sistemas de Informação na faculdade.

– E por que não estudou? – ele perguntou, num tom baixo, com uma leve nota de reprovação em sua voz.

– O senhor sabe… o acidente!

Capítulo 4 – Desconfiança

– Bem, isso não é desculpa. Por que não estudou depois do acidente?

Anya baixou a cabeça. Se pudesse evitar, não contaria mais sobre sua vida do que já tinha contado, mas era de se pensar que Do Jin não perderia uma oportunidade de escrutinar seus segredos mais íntimos.

– Responda, Anya! Já te contei que preciso saber tudo sobre a vida dos meus empregados mais íntimos.

Um pouco reticente, Anya continuou:

– No acidente, eu fiquei no fogo por quase um minuto, o senhor consegue imaginar isso? Além das queimaduras, quebrei as últimas vértebras da coluna e fiquei em coma por 3 anos. Quando consegui sair do hospital, eu não conseguia me olhar no espelho, não conseguia andar direito, não conseguia sair de casa sem uma terrível sensação de ansiedade me acometer.  Eu percebi que minha vida tinha acabado, pois minha mãe nunca me ajudaria a estudar e meu pai estava morto e eu não tinha como me manter.

– Mas você mora sozinha com sua amiga. Como consegue se manter agora?

– Bem, quando meu pai faleceu, ele deixou um seguro para mim. Mais de duzentos mil reais. Quando minha mãe soube, ela não descansou. Infernizou minha vida, chegando a sugerir que eu havia matado meu pai de propósito. Assim que eu completei 21 anos há seis meses, eu peguei uma parte do dinheiro para me manter e dei o restante para ela, pois eu tinha sonhos de que eu pudesse trabalhar e ter algum dinheiro, sem depender dela. O problema é que não havia conseguido nenhum emprego, até agora. Bem, apenas temporários.

– Se você não conseguisse esse emprego, iria voltar para a casa de sua mãe?

– Sim.- respondeu ela, depois de um tempo. Por que Do Jin tinha que ser tão curioso? Ela queria deixar tudo no passado, mas ele insistia e insistia. Parecia que queria enfiar o dedo numa ferida aberta.  

– Você exigiria o dinheiro que por direito é seu de volta se precisasse retornar para a sua mãe?

– N-Não, eu não poderia fazer isso. Nem minha mãe devolveria.

– Anya… você é muito… como eu posso dizer isso sem ofendê-la… você é muito ingênua. – disse Do Jin, olhando preocupado para ela.

– E isso é ruim? Acha que eu deveria ser diferente? – perguntou Anya, esperando que ele respondesse sinceramente. Acreditaria na palavra dele, pois ele era mais velho e parecia conhecer mais sobre esse mundo que ela pouco entendia, principalmente, depois do acidente que lhe deformara o rosto. E fora sua amiga Beth, que não era assim um gênio, Do Jin parecia ser a pessoa mais próxima dela, alguém a quem ela respeitava.

Do Jin ficou pensativo por alguns minutos e depois sorriu. Anya gostava de ver Do Jin sorrindo por alguma razão que ainda não conseguia explicar.

– Acho que não. Você é agradavelmente doce… mas é muito vulnerável às pessoas, se estas lhe quiserem fazer mal. Mesmo eu, Anya, você parece confiar em mim, e você não deveria fazer isso…

– E por que não?- perguntou ela, tentando compreender o que ele queria dizer.

Ele sorriu novamente. Era um sorriso misterioso. Havia essa aura em Do Jin. Algo de tenebroso e ao mesmo tempo generoso que Anya não conseguia definir.

– Você é uma mulher e eu sou um homem.

– Eu não entendi. – disse Anya, de fato, ela não conseguia entender porque não poderia confiar nele – Doutor, o senhor confiou em mim para ser sua secretária, por isso, eu também confio no senhor. Além de Beth, nunca tive outra amiga e gostaria muito de tê-lo como um amigo.

– Eu não faço amizades com meus empregados, Anya. – respondeu ele, mais ríspido do que Anya esperava e isso a deixou sem jeito.

– Sinto muito por ter dito isso, então. Mas não vou mudar de ideia. O senhor me ajudou dando-me este emprego, por isso, vou fazer de tudo para compensá-lo por esta confiança.

– Tudo bem, Anya. Mas não me coloque num pedestal, ou você poderá se decepcionar. É saudável ter um pouco de desconfiança.

“Um pouco”, pensou Anya. Enquanto ela confiava nele, Do Jin parecia ter desconfiança até da própria sombra.

– Está bem, doutor – disse ela, sentindo o rosto enrubescer. – Então, o senhor deseja alguma alteração na sua agenda?

– Não, Anya. Eu gostaria que você organizasse os relatórios do faturamento de uma empresa chamada Bender e Cia. Depois do almoço, preciso entregar esse relatório para o Gil da mesma empresa. Então, preciso disto pronto até às duas. Ligue para a Copa e encomende seu almoço. Você vai precisar fazer hora extra se quiser terminar o trabalho em tempo. Se perceber que você vai se atrasar, Anya, peça ajuda a Karina. É imprescindível terminar o relatório em tempo. Há alguns modelos em alguma pasta do notebook, espero que você encontre.

– Sim, senhor. Acho que devo ter visto um modelo de um relatório feito com os dados de outra empresa.

– Ótimo. Se tiver dúvidas, fale comigo.

Anya retornou meio sem jeito para sua sala e passou a explorar o notebook, para tentar encontrar um modelo do relatório. Depois acessou a internet para exportar os dados da intranet numa planilha do Excel e ajustou as informações de acordo com o modelo. Meia hora depois, ela entrou na sala de Do Jin.

– Doutor? O senhor está muito ocupado? – perguntou ela, ao ver que ele ainda estava debruçado sobre os mesmos papéis de antes.

– Já encontrou o modelo?

– Na verdade, já fiz o relatório, mas precisava que o senhor o analisasse para saber se eu estou indo no caminho certo.

Do Jin franziu o cenho e fez uma cara de incredulidade e desconfiança.

– Terminou o relatório? Como assim? – perguntou ele tirando os papeis que estavam nas mãos de Anya para lê-los. Depois de alguns segundos folheando cada página e usando a calculadora para conferir os dados, Do Jin simplesmente levantou-se e saiu da sala, deixando Anya sem saber o que fazer.

– E essa agora? – disse ela a si mesma. Sentindo-se frustrada, Anya retornou a sua sala. Novamente, abriu o notebook e passou a rever os cálculos que havia importado da intranet. – Será que fiz errado?

Era um pouco confuso, mas a elaboração do relatório não era assim tão difícil, bastava um pouco de experiência com planilhas e fórmulas, o que para ela era fácil.

Ainda assim, poderia ter entendido tudo errado e se apressado a mostrar aquele relatório para Do Jin. Por que não o levou primeiro a Karina? A secretária da vice-presidência iria conferir antes de Do Jin e assim ela pouparia uma chamada de atenção se tivesse feito tudo errado.

Passou uma hora antes que Do Jin retornasse. Ela escutou quando a porta da sala dele se abriu, mas não quis interrompê-lo, achou melhor que fosse o que fosse, que ele viesse até ela. Além do mais, estava entretida ao olhar os arquivos do notebook, informação que para ela era valiosa naquele período de adaptação ao emprego.

E enquanto aguardava, colocou o fone, escutou de novo a gravação da reunião do dia anterior e transcreveu tudo o que aconteceu na reunião do dia anterior.

Quando Do Jin invadiu sua sala, Anya terminava de imprimir a ata.

– Doutor, aqui está a ata da reunião de ontem. – disse ela, entregando-lhe uma cópia. – Sobre o relatório, tenho certeza de que posso consertá-lo, doutor. Se Karina puder me ajudar, eu tenho certeza de que consigo até às…

– Consertar o que?- perguntou ele, com um ar estranho. – Eu fui até o departamento de faturamento e conferi os números com o gerente. Como você fez isso tão rapidamente? Karina costuma levar horas digitando esse relatório.

– Bem, na verdade, não precisei digitar nenhum valor. Importei do relatório que há na intranet e converti para uma planilha. Então, ajustei de acordo com os modelos salvos previamente no computador, doutor e conferi as fórmulas.

– Sim… e fez isso sem nunca ter trabalhado num escritório antes?- perguntou ele e havia uma nota de desconfiança em sua voz que magoava Anya.

– Não é tão difícil. – falou ela, sentindo-se desconfortável com aquele olhar ameaçador.

– Você não está me enganando, não é Anya? Por que quando eu te contratei, eu sabia que você iria demorar muito para se adaptar ao serviço. Imaginei que teria muito trabalho em treinar você até deixa-la da maneira como eu queria. O incrível é que para uma menina de vinte e um anos que nunca tenha tido qualquer experiência, um relatório dessa complexidade tenha sido feito em questão de minutos, ao invés de horas, quando a mais experiente secretária que temos não consegue.

– O que está sugerindo, doutor? Que eu sou uma espiã dos seus tios que veio aqui para controlar seus passos? – retorquiu ela, odiando que ele desconfiasse dela, daquela forma.

– Não sei, Anya, você é?

Anya abriu a boca, abismada.

– Você não sabe o que diz. Achei que a qualquer momento você me despediria por ser uma idiota incompetente e sem experiência, não que fosse me demitir por ter feito um relatório corretamente. Eu não tenho culpa se Karina utiliza outro método. Acaso vocês não sabiam que é possível exportar os dados em planilhas?

– Eu sabia, é claro. Um dos analistas de suporte ensinou Karina e eu como fazer essa exportação. Mas nós não conseguimos fazer e eu não gosto de ninguém do setor de Tecnologia se enfiando na minha presidência, por isso, Karina ainda utiliza outros métodos.

– Sua desconfiança só está gerando morosidade para os processos da sua empresa. – agulhou Anya.

– Como é? – perguntou ele, com um ar ameaçador. Até Anya ficou assustada.

– O senhor disse para sempre ser honesta com o senhor. Só estava obedecendo suas ordens.

– Esse seu linguajar não está me ajudando a confiar na sua inexperiência, Anya. Pelo contrário, vendo você falar desse jeito, só me leva a pensar que já trabalhou numa grande corporação para entender como certas teorias são aplicadas.

– Ora, eu não sou uma completa imbecil. Além do mais, eu vejo filmes e gosto muito de ler. Não sou totalmente inculta.

– Estou vendo isso… – disse ele, ainda com o olhar desconfiado. – Vou olhar essa ata, depois conversamos.

Quando Do Jin saiu, Anya sentiu os olhos marejando.

– Uma discussão com o chefe no segundo dia de trabalho, muito bem Anya! – disse ela para si mesma e se sentou na mesa. Depois de alguns minutos tentando controlar o choro, Anya não conseguiu mais segurar e cruzou os braços sobre a mesa e enfiou o rosto entre os braços, enquanto seu corpo chacoalhava com os soluços.

– E por que está chorando agora? 

Anya levantou o rosto ao escutar a voz de seu chefe. Ele estava diante dela novamente e tinha a ata nas mãos.

– Não gosto de mulheres choronas… – disse ele num tom de reprovação. – É melhor acostumar: Eu tenho a desconfiança como parceira de trabalho.

Anya automaticamente enxugou as lágrimas com as costas da mão, mas sabia que não iria conseguir parar de chorar com tanta facilidade. A verdade é que ela era realmente chorona. Odiava essa sua característica, mas se magoava com facilidade, mesmo já estando acostumada com agressões de toda ordem.

– Há um erro na ata. Eu circulei. Corrija-o.  – disse ele, jogando a ata sobre a mesa dela.

– Sim, doutor… – disse ela, fungando o nariz.

– E pare de chorar, pelo amor de Deus, Anya.

– Sim, doutor…